domingo, 1 de agosto de 2010

A LETRA NO CORPO (respostagem do texto integral, à pedido)

Madrugadas podem ser frias, assim como pessoas podem ser cruéis.

Sobre madrugadas e frio eu sempre entendi muito. Afinal, nasci sob o mais rigoroso dos invernos russos e, criado por minha mãe, já que meu pai nos deixou quando eu tinha apenas sete anos, me habituei a passar noites acordado esperando, junto aos estranhos na estação ou olhando o fogo na pequena lareira, que ela voltasse do trabalho.
Meu nome é Alexei e tenho dezessete anos de idade. Na próxima semana é meu aniversário e serei mais um no exército chercheno.
Talvez lhes pareça comum a minha história, mas, é a minha história. Eu não a desejei, alguém a escreveu como eu lhes escrevo agora.
Naquela madrugada fria, fui até a estação esperar por minha mãe. Me sentei, como de costume, no banco mais próximo da parada 19. Acendi um cigarro e observava os vagabundos, os bêbados, aqueles que chegavam e os que partiam. Me perdi em pensamentos até que fui despertado por um sussuro ao ouvido.
- Você tem um cigarro?
Me afastei bruscamente e ao olhar para ele senti uma mistura de paraíso e horror percorrer minhas veias.
- Perdoe se o assustei.
Sua voz parecia ter algo celeste, mas, também, me trazia uma inexplicável angústia.
Igor Tenenko. Este era seu nome.
Um homem alto, com traços que eu poderia reconhecer em mim mesmo no espelho dos vinte anos futuros.
Igor era um oficial do exército e não foi difícil conversarmos por quase uma hora sentados no banco da parada 19.
Logo, nos víamos todos os dias. Logo, eu sabia tudo sobre aquele homem de olhar doce e sombrio, casaco marrom e que me fazia falar de minha vida como nunca falara ao meu melhor amigo ou à minha própria mãe. Neste ponto, o considerava meu irmão, meu pai, meu filho. É claro que essa relação começava a incomodar minha mãe, que não podia entender porque eu deixara a companhia dos amigos pela cumplicidade com o coronel Tenenko. Afinal, dizia ela, mesmo sem o ter visto, ele tem idade para ser seu pai.
Quando o exército russo invadiu a Chechênia, eu já era um soldado.

A guerra se arrastou por cinco longos anos e, nesse período, eu enterrei amigos, matei os que me disseram ser meus inimigos, vi fé se misturando com sangue em todos os dias de confrontos e sofri ao ter que partir de Grozny deixando Igor numa prisão.
Ao retornar à Rostov, encontrei minha mãe doente, morando em um apartamento fétido e pequeno. A cidade havia crescido, as oportunidades de trabalho deixaram de existir e as pessoas pareciam seres de um outro lugar.
Nesta época eu trabalhava numa fábrica de ração. Foram dias insuportáveis em meio ao mau cheiro de restos de frangos, bois e tudo o mais que se pudesse adicionar àquela mistura horrenda e que, ao final, era embalada em vistosas sacolas plásticas com estampas de cães felizes.
A saúde de minha mãe piorava a cada dia, mas, nesse ponto, eu já havia conseguido um lugar melhor para morarmos. Um apartamento pequeno e pintado com uma cor acinzentada que me fazia pensar estar do lado de fora, comigo por dentro.
Foram dois anos de espera, até que numa tarde chuvosa, ao sair da maldita fábrica, pude ver, de novo, os olhos do único ser capaz de me transmitir paz, me acalmar os medos e me renovar esperanças naquela terra gélida e triste.
Os olhos de Igor. Talvez fossem estes os poucos sinais reconhecíveis naquela figura maltratada pela prisão, pela guerra e por ver suas convicções políticas explodirem como que saídas de um tanque de guerra.
Ficamos abraçados por minutos que pareceram uma eternidade. Aquele misto de pai, filho, amor, calor e dor, reacenderam em meu peito como uma brasa encoberta pela neve.
Agora, eu tinha quase vinte e cinco anos. A morte de minha mãe aconteceu um mês depois da chegada de Igor. Ainda me arde na memória a imagem bela de seu rosto naquela caixa escura.
Escuridão. Essa é minha concepção da morte. Um grande e imenso vazio escuro onde permanecemos por um tempo indefinido, até que uma grande luz venha e nos arrebate para o lugar que não nos é permitido conhecer, senão neste sagrado momento.

Fitava impassível o rosto daquela mulher e recordava cada momento passado junto a ela. Minha mente se transformara, por instantes, em uma louca máquina do tempo onde flores e jardins se misturavam a cheiros de cevada e bolos de carne. Lembranças de domingos alegres.
- Vamos?
- Sim, me distraí por instantes.
- Vamos passar por isso juntos.
- Obrigado por estar ao meu lado.
A resposta foram seus braços me envolvendo e, só nesse instante, me dei conta de que ainda não chorara. O fiz com a mais sofrida dor, enquanto as mãos de Igor me acariciavam os cabelos.
- Tenho medo!
- Não tenha! Estou contigo.
Caminhamos abraçados como que migrando para um lugar diferente, ao pôr do sol de setembro.
Agora podia entender o porquê de minha tia manter em sua casa, após anos, todos os pertences de seu amado e falecido marido.
A cada gaveta remexida, uma lembrança. A cada lembrança um sorriso ou uma lágrima. Assim, juntei todas as coisas de minha mãe e as levei ao asilo de Rostov.
Igor conseguira um trabalho no campo, trabalhava na colheita de trigo. Nossos turnos diferentes não nos deixava restar muito tempo para estar juntos. Mas, quando estávamos, o tempo parecia parar, o mundo parecia não ter fim.
Nos meses que se seguiram, nossas vidas pareciam ter, enfim, um caminho a ser trilhado. Nossas esperanças se renovavam a cada dia. Igor ainda trabalhava no campo e, graças às nossas economias, morávamos num bom apartamento onde eu podia cultivar violetas na varanda.

Igor já conseguia lidar melhor com suas lembranças da guerra, graças a sua grande capacidade de recomeçar e ao tratamento psicológico oferecido pelo governo.
Quanto a mim, acreditava que cada dia era um novo nascimento, uma nova porta que se abria para o distanciamento dos horrores vividos no Cáucaso, embora minhas noites ainda fossem povoadas pelo som de gritos, bombas e choro das crianças. O choro das crianças...Esse era o som que mais me atormentava.
- Alexei! Alexei!
Todas as noites tinha a mesma sensação ao despertar dos malditos pesadelos. O rosto triste de Igor e seu abraço na madrugada passaram a fazer parte da insônia que insistia em adentrar o meu mundo, tal qual o ladrão invade casas alheias e as furta sem consentimento.
- Você não pode mais adiar uma consulta ao médico, Alexei. Seus pesadelos têm sido muito constantes, você precisa se livrar dessas dores. Lembre-se que não estamos mais na guerra.
- Me perdoe tê-lo acordado mais uma vez, mas, tenho certeza de que conseguirei me livrar disso sozinho.
- Descanse, conversaremos sobre isso amanhã.
Passei o resto da noite acordado e me amargurava não ter a coragem suficiente para olhar Igor nos olhos e lhe dizer toda a verdade. Logo eu que sempre fora verdadeiro em todas as coisas, agora me deixava morrer por dentro pela dor que causei a quem sequer conhecia.
- Bom dia!
- Café na cama? Não mereço isto depois de ter lhe feito perder sua noite cuidando de mim.
- Cuidaria de você, mesmo perdesse todas as noites de minha vida.
A primavera despontava bela no céu de Rostov. Os canteiros pareciam ter adquirido nova vida e os girassóis agora tinham o mais belo dos tons amarelos.
Igor se esforçava para me arrancar do mundo cinza onde eu mesmo insistia adentrar.
Os passeios pelo parque, as caminhadas pelas vielas vazias, o abraço ao entardecer. Tudo me remetia a um grande vazio, velado pelos sorrisos que, cuidadosamente, não me permitia esquecer. Afinal, pensava eu, Igor passou por momentos piores que os meus. Era como se não me fosse permitido mostrar minha dor. Como se a dor tivesse se tornado um grande segredo do qual só eu mesmo podia compartilhar.
Certa noite, após o jantar, num esforço tamanho, recolhi pratos e talheres e caminhei em direção a cozinha. Podia perceber que Igor me observava, mas não tinha coragem de lhe encarar.
- Alexei!
Me virei rapidamente e lá estava ele, braço apoiado no umbral da porta, me fitando com os mesmos olhos que anos atrás haviam me trazido tanta paz.
- Não pode mais me olhar nos olhos?
- Claro que sim. Por que me pergunta isso?
- Porque há meses você não o faz. Porque há meses percebo seu sorriso obrigatório. Porque há meses não sei quem é você.
- O que você está dizendo não faz sentido.
- Então, me olhe nos olhos.
- Não faça isso.
- Por favor!
Instantaneamente, uma lágrima me desceu o rosto e senti a mão de Igor segurando a minha, como se quisesse arrancar minha dor em um só toque, como se quisesse me abrir o peito e colocar vida onde havia angústia. Olhei para seus olhos e vi que ele também tinha o rosto molhado. O abracei com força e senti suas mãos tocando a cicatriz em minhas costas como fosse um artista a pincelar uma tela.
- Y, Y, Y – ele sussurrava ao meu ouvido enquanto continuava a tocar minhas costas.
Eu não conseguia falar. O choro havia tomado conta de mim como se estivesse mergulhado em um grande pesadelo. As lembranças afloravam tal qual os girassóis do parque. No início amareladas, depois com cores fortes que me faziam gritar em meio aos soluços de meu pranto desenfreado.
- Meu filho não, por favor, meu filho não!
O choro da criança, os gritos da mãe, o abraço de Igor, as imagens se desenhando em minha mente.
- Atire em mim! Meu filho não.
O tiro, o desmaio, a navalha percorrendo minha pele, o Y de Yanko, a criança órfã, minha mãe, Igor, meu pai, a letra no corpo.
Madrugadas podem ser frias, assim como pessoas podem ser cruéis.
Agora entendia mais sobre amor, dor, alegria, entre o bem e o mau.
Agora entendia o grande mistério de mim e não poderia conviver com ele, por isso, parti.

(Para Carlinha que, como eu, tem sua letra no corpo)