domingo, 1 de agosto de 2010

A LETRA NO CORPO (respostagem do texto integral, à pedido)

Madrugadas podem ser frias, assim como pessoas podem ser cruéis.

Sobre madrugadas e frio eu sempre entendi muito. Afinal, nasci sob o mais rigoroso dos invernos russos e, criado por minha mãe, já que meu pai nos deixou quando eu tinha apenas sete anos, me habituei a passar noites acordado esperando, junto aos estranhos na estação ou olhando o fogo na pequena lareira, que ela voltasse do trabalho.
Meu nome é Alexei e tenho dezessete anos de idade. Na próxima semana é meu aniversário e serei mais um no exército chercheno.
Talvez lhes pareça comum a minha história, mas, é a minha história. Eu não a desejei, alguém a escreveu como eu lhes escrevo agora.
Naquela madrugada fria, fui até a estação esperar por minha mãe. Me sentei, como de costume, no banco mais próximo da parada 19. Acendi um cigarro e observava os vagabundos, os bêbados, aqueles que chegavam e os que partiam. Me perdi em pensamentos até que fui despertado por um sussuro ao ouvido.
- Você tem um cigarro?
Me afastei bruscamente e ao olhar para ele senti uma mistura de paraíso e horror percorrer minhas veias.
- Perdoe se o assustei.
Sua voz parecia ter algo celeste, mas, também, me trazia uma inexplicável angústia.
Igor Tenenko. Este era seu nome.
Um homem alto, com traços que eu poderia reconhecer em mim mesmo no espelho dos vinte anos futuros.
Igor era um oficial do exército e não foi difícil conversarmos por quase uma hora sentados no banco da parada 19.
Logo, nos víamos todos os dias. Logo, eu sabia tudo sobre aquele homem de olhar doce e sombrio, casaco marrom e que me fazia falar de minha vida como nunca falara ao meu melhor amigo ou à minha própria mãe. Neste ponto, o considerava meu irmão, meu pai, meu filho. É claro que essa relação começava a incomodar minha mãe, que não podia entender porque eu deixara a companhia dos amigos pela cumplicidade com o coronel Tenenko. Afinal, dizia ela, mesmo sem o ter visto, ele tem idade para ser seu pai.
Quando o exército russo invadiu a Chechênia, eu já era um soldado.

A guerra se arrastou por cinco longos anos e, nesse período, eu enterrei amigos, matei os que me disseram ser meus inimigos, vi fé se misturando com sangue em todos os dias de confrontos e sofri ao ter que partir de Grozny deixando Igor numa prisão.
Ao retornar à Rostov, encontrei minha mãe doente, morando em um apartamento fétido e pequeno. A cidade havia crescido, as oportunidades de trabalho deixaram de existir e as pessoas pareciam seres de um outro lugar.
Nesta época eu trabalhava numa fábrica de ração. Foram dias insuportáveis em meio ao mau cheiro de restos de frangos, bois e tudo o mais que se pudesse adicionar àquela mistura horrenda e que, ao final, era embalada em vistosas sacolas plásticas com estampas de cães felizes.
A saúde de minha mãe piorava a cada dia, mas, nesse ponto, eu já havia conseguido um lugar melhor para morarmos. Um apartamento pequeno e pintado com uma cor acinzentada que me fazia pensar estar do lado de fora, comigo por dentro.
Foram dois anos de espera, até que numa tarde chuvosa, ao sair da maldita fábrica, pude ver, de novo, os olhos do único ser capaz de me transmitir paz, me acalmar os medos e me renovar esperanças naquela terra gélida e triste.
Os olhos de Igor. Talvez fossem estes os poucos sinais reconhecíveis naquela figura maltratada pela prisão, pela guerra e por ver suas convicções políticas explodirem como que saídas de um tanque de guerra.
Ficamos abraçados por minutos que pareceram uma eternidade. Aquele misto de pai, filho, amor, calor e dor, reacenderam em meu peito como uma brasa encoberta pela neve.
Agora, eu tinha quase vinte e cinco anos. A morte de minha mãe aconteceu um mês depois da chegada de Igor. Ainda me arde na memória a imagem bela de seu rosto naquela caixa escura.
Escuridão. Essa é minha concepção da morte. Um grande e imenso vazio escuro onde permanecemos por um tempo indefinido, até que uma grande luz venha e nos arrebate para o lugar que não nos é permitido conhecer, senão neste sagrado momento.

Fitava impassível o rosto daquela mulher e recordava cada momento passado junto a ela. Minha mente se transformara, por instantes, em uma louca máquina do tempo onde flores e jardins se misturavam a cheiros de cevada e bolos de carne. Lembranças de domingos alegres.
- Vamos?
- Sim, me distraí por instantes.
- Vamos passar por isso juntos.
- Obrigado por estar ao meu lado.
A resposta foram seus braços me envolvendo e, só nesse instante, me dei conta de que ainda não chorara. O fiz com a mais sofrida dor, enquanto as mãos de Igor me acariciavam os cabelos.
- Tenho medo!
- Não tenha! Estou contigo.
Caminhamos abraçados como que migrando para um lugar diferente, ao pôr do sol de setembro.
Agora podia entender o porquê de minha tia manter em sua casa, após anos, todos os pertences de seu amado e falecido marido.
A cada gaveta remexida, uma lembrança. A cada lembrança um sorriso ou uma lágrima. Assim, juntei todas as coisas de minha mãe e as levei ao asilo de Rostov.
Igor conseguira um trabalho no campo, trabalhava na colheita de trigo. Nossos turnos diferentes não nos deixava restar muito tempo para estar juntos. Mas, quando estávamos, o tempo parecia parar, o mundo parecia não ter fim.
Nos meses que se seguiram, nossas vidas pareciam ter, enfim, um caminho a ser trilhado. Nossas esperanças se renovavam a cada dia. Igor ainda trabalhava no campo e, graças às nossas economias, morávamos num bom apartamento onde eu podia cultivar violetas na varanda.

Igor já conseguia lidar melhor com suas lembranças da guerra, graças a sua grande capacidade de recomeçar e ao tratamento psicológico oferecido pelo governo.
Quanto a mim, acreditava que cada dia era um novo nascimento, uma nova porta que se abria para o distanciamento dos horrores vividos no Cáucaso, embora minhas noites ainda fossem povoadas pelo som de gritos, bombas e choro das crianças. O choro das crianças...Esse era o som que mais me atormentava.
- Alexei! Alexei!
Todas as noites tinha a mesma sensação ao despertar dos malditos pesadelos. O rosto triste de Igor e seu abraço na madrugada passaram a fazer parte da insônia que insistia em adentrar o meu mundo, tal qual o ladrão invade casas alheias e as furta sem consentimento.
- Você não pode mais adiar uma consulta ao médico, Alexei. Seus pesadelos têm sido muito constantes, você precisa se livrar dessas dores. Lembre-se que não estamos mais na guerra.
- Me perdoe tê-lo acordado mais uma vez, mas, tenho certeza de que conseguirei me livrar disso sozinho.
- Descanse, conversaremos sobre isso amanhã.
Passei o resto da noite acordado e me amargurava não ter a coragem suficiente para olhar Igor nos olhos e lhe dizer toda a verdade. Logo eu que sempre fora verdadeiro em todas as coisas, agora me deixava morrer por dentro pela dor que causei a quem sequer conhecia.
- Bom dia!
- Café na cama? Não mereço isto depois de ter lhe feito perder sua noite cuidando de mim.
- Cuidaria de você, mesmo perdesse todas as noites de minha vida.
A primavera despontava bela no céu de Rostov. Os canteiros pareciam ter adquirido nova vida e os girassóis agora tinham o mais belo dos tons amarelos.
Igor se esforçava para me arrancar do mundo cinza onde eu mesmo insistia adentrar.
Os passeios pelo parque, as caminhadas pelas vielas vazias, o abraço ao entardecer. Tudo me remetia a um grande vazio, velado pelos sorrisos que, cuidadosamente, não me permitia esquecer. Afinal, pensava eu, Igor passou por momentos piores que os meus. Era como se não me fosse permitido mostrar minha dor. Como se a dor tivesse se tornado um grande segredo do qual só eu mesmo podia compartilhar.
Certa noite, após o jantar, num esforço tamanho, recolhi pratos e talheres e caminhei em direção a cozinha. Podia perceber que Igor me observava, mas não tinha coragem de lhe encarar.
- Alexei!
Me virei rapidamente e lá estava ele, braço apoiado no umbral da porta, me fitando com os mesmos olhos que anos atrás haviam me trazido tanta paz.
- Não pode mais me olhar nos olhos?
- Claro que sim. Por que me pergunta isso?
- Porque há meses você não o faz. Porque há meses percebo seu sorriso obrigatório. Porque há meses não sei quem é você.
- O que você está dizendo não faz sentido.
- Então, me olhe nos olhos.
- Não faça isso.
- Por favor!
Instantaneamente, uma lágrima me desceu o rosto e senti a mão de Igor segurando a minha, como se quisesse arrancar minha dor em um só toque, como se quisesse me abrir o peito e colocar vida onde havia angústia. Olhei para seus olhos e vi que ele também tinha o rosto molhado. O abracei com força e senti suas mãos tocando a cicatriz em minhas costas como fosse um artista a pincelar uma tela.
- Y, Y, Y – ele sussurrava ao meu ouvido enquanto continuava a tocar minhas costas.
Eu não conseguia falar. O choro havia tomado conta de mim como se estivesse mergulhado em um grande pesadelo. As lembranças afloravam tal qual os girassóis do parque. No início amareladas, depois com cores fortes que me faziam gritar em meio aos soluços de meu pranto desenfreado.
- Meu filho não, por favor, meu filho não!
O choro da criança, os gritos da mãe, o abraço de Igor, as imagens se desenhando em minha mente.
- Atire em mim! Meu filho não.
O tiro, o desmaio, a navalha percorrendo minha pele, o Y de Yanko, a criança órfã, minha mãe, Igor, meu pai, a letra no corpo.
Madrugadas podem ser frias, assim como pessoas podem ser cruéis.
Agora entendia mais sobre amor, dor, alegria, entre o bem e o mau.
Agora entendia o grande mistério de mim e não poderia conviver com ele, por isso, parti.

(Para Carlinha que, como eu, tem sua letra no corpo)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

DEZ ENCONTROS

Encontrei você dia desses e, em minhas loucas contas, parecia ser o nono.
Te mostrei a vista da minha sala, mas, ainda não pude te ver me vendo.
Te levei à uma viagem longa, mas, não pude viajar seu sonho.
Encontrei você no dia que não risquei do calendário e agora me perdi no tempo.
Te levei pra cama e, num transe, dormi com o filho que nunca pude ter.
Te levei pra festa, mas, seu suor me embaçou o ver.
Encontrei você no acaso do desencontro, no ocaso da minha dor.
Porque será que não conto o décimo?
Porque só os milésimos me fascinam?
Se te encontrei em milênios, porque você não vê a minha vista?
Se te encontrei em dia claro, porque não decolo minha aeronave?
Se vou te perder no longe, porque insisto em olhar o breve?
Por quantas vezes terei que estar dentro de ti para te enxergar?
Por quantas vezes terei que te iludir pra me incendiar?
Por quanto tempo sua boca sôfrega ainda irá me inebriar?
Sempre tive encontros rápidos em dias longos.
Sempre medi intensidades como se medem paredes.
Hoje, descobri que, contigo, a regressiva conta não conta mais,
a progressiva já não me apraz.
Tive nove e viraste o décimo milhar de dez encontros.

sábado, 29 de agosto de 2009

PÓLOS

Imantava letras na madrugada
quando encontrei sua agenda.
Meio empoeirada, guardava páginas
do mais puro dos brancos nórdicos.
Passei folhas até chegar à penúltima delas
e, como se especialista fora, decifrei seu
manuscrito que dizia que iríamos junto ao Japão em Novembro.
Logo você que nunca planou comigo, deu pra me
incluir em seus planos.
Logo você que nunca nadou comigo, deu pra
desafiar as leis da minha física.
Logo você que nunca fez ninhos, deu pra
querer me dar mundos.
Passo à próxima folha e me vem o branco
da cegueira de Saramago.
Percebo seu norte, seu sul e seu noroeste.
Logo agora que cismei de colocar a pilha ao contrário,
logo agora que não magnetizo,
logo agora que não imanto.
Logo agora que mudei a direção.
O Japão é do outro lado.
E você, em que pólo está?

domingo, 5 de julho de 2009

Não peque mais

Me perdoe!
Me perdoe por ser enfático.
Me perdoe por não ser dogmático.
Me perdoe por ser tão prático.
Me perdoe por não acreditar nas histórias que você leu
em seu livro preto e que, para mim, sempre pareceram assustadoras.
Me perdoe!
Me perdoe pelas mentiras que contei pra não te ver chorar.
Me perdoe pelas tantas vezes que, com raiva de seu choro,
não consegui te abraçar.
Me perdoe !
Me perdoe por não acreditar no inferno.
Me perdoe por arder de desejo em pleno inverno.
Me perdoe se nunca existirem crianças em sua sala te chamando de avó.
Me perdoe por me sentir tão só.
Me perdoe!
Me perdoe, mãe, porque pequei.
Pequei contra ti quando me geraste,
e a natureza que você chama de Deus
me fez ser o que você denomina “isto”.
Me perdoe!
Me perdoe por ser o melhor da escola,
Me perdoe se eu ainda gosto de jogar bola
Me perdoe por cada instante em que eu te perdôo,
Te olho e te digo baixinho: Vá é não peque mais!

terça-feira, 26 de maio de 2009

APOCALIPE-SE

Recebo os sinais da virgem.
As suas dores, as suas contrações e os seus medos.
Vejo se levantar o anjo que anuncia, espada em punho, a morte do não nascido.
Sinto o calor da espada que parece saída do fogo do inferno.
No fundo de seus olhos posso ver a dor que o faz ser mensageiro de Deus.
Sinto o seu corpo sobre o meu corpo e vejo que ele sangra.
Incestuoso e profano é o seu beijo,
a sua lingua entre meus lábios
e a sua mão que se entrelaça à minha.
Tenho dores ao sentir dentro de mim
o que agora chama de louco.
Vejo se erguer a sua espada flamejante e
a sinto penetrar em meu ventre,
arrancando de mim o que não deveria nascer.
Neste instante, ele grita e monta em seu cavalo
que se funde ao seu corpo.
Sobrevoa minha cama, cura minha ferida
e parte levando consigo o que agora
chama de filho de Deus.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O OLHAR E O OLHAR DE MARIA DAS DORES (capítulo final)

Passaram-se os meses, assim como passaram pela casa de Maria, o delegado, o investigador, as equipes de reportagem, os videntes e todos aqueles que instigados pela visão contada pelo filho do peixeiro, iam pedir preces ou pelo menos conhecer a mulher que podia ouvir o Padre Cícero.

Em alguns dias, sob o sol causticante, podia-se contar filas com mais de duzentas, trezentas pessoas, esperando, terços em punho, pela oportunidade de se aproximar de Maria e pelo menos tocar-lhe as mãos.

Maria não mais podia curtir o couro dos carneiros que, como ela, envelheciam por seu terreiro sem vida. Nunca mais pudera sentar-se à sombra do pé de juá sem que uma multidão a estivesse acompanhando. O juazeiro só compartilhava com ela a luz da lua, o único momento em que podia se sentir aliviada de tantas rezas, perguntas e lamentos.

Nunca fora de muito rezar. Apesar de ter fé em seu “padin”, na beata Maria e em Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria sempre fez suas preces cantando, sem muitos terços, ave-marias ou padre-nossos. Ao contrário de dona Maria da Ajuda, sua mãe, que acordava de madrugada para rezar terços e passava dias em jejum por gratidão ou pedido aos santos.

Maria cresceu ouvindo sua mãe dizer que no dia de seu nascimento, vinte de julho, viu à beira da cama a imagem do Padre Cícero a lhe estender os braços e a lhe dizer que naquele dia havia nascido uma criança com o olho de Deus. Essa história foi contada aos quatro cantos do Juazeiro, mas, com o passar dos anos, a promessa de se ter ali uma santa perdeu-se no vento. Nunca fizera milagre algum a não ser o de transformar couro de bicho em artefato para calçar o povo.

Assim como a lenda de sua santidade, a visão que tivera da morte de Maria do Carmo, aos poucos, deixou de ter importância para o povo da região e ibope para os meios de comunicação.
A vida voltava ao normal a cada amanhecer. Maria já podia cantar depois de quase dois anos do acontecimento. Pedro já era um rapaz feito e, dia ou outro, aparecia levando uma fruta ou um punhado de surubins. A agonia do momento vivido junto a Maria os tornara próximos, como se amigos fossem há tempos.

- Dona Maria!
- Se achegue, Pedro. Tô aqui a costurar.
- Dona Maria, eu tô que tô aperreado desde ontem de noitinha.
- Vixi, menino. O que se assucedeu?
- Olhe que ontem eu tava lá arrumando as coisas de casa e achei esse cordãozinho. Pega só pra senhora ver.

Com o olhar que só o tato poderia lhe dar, Maria viu que era um objeto que conhecia muito bem e de longa data.

- Menino! Mas esse cordão é de Do Carmo. Oxe se não é o cordão com a chavezinha que ela não tirava do pescoço. Onde tu achou isso?
- Tô lhe dizendo. Tava arrumando as coisa lá no quartinho dos fundo quando vi que tinha um troço reluzindo no chão.

Pedro pôde ver o semblante de Maria transformar-se enquanto carinhosamente apalpava o objeto em suas mãos e, nesse pequeno instante, passaram-lhe pela cabeça os mais estranhos pensamentos. O que estaria aquela senhora de aparência franzina à sua frente a imaginar?

Não era letrado. Era filho de pescador e, como tal, aprendiz de pescador era. É certo que não gozava do dom como o seu pai, mas, para quem crescera acostumado ao cheiro do agora escasso pescado e sem grandes oportunidades numa terra pobre, ser pescador era o ofício que se apresentava para seguir.

- Se avexe não, menino. Eu estou cá com meus pensamentos mas não to a pensar nada de mal de ti ou de seu Antônio.
- Olhe, Dona Maria. Antes de trazer o cordãozinho eu perguntei pro pai se ele sabia de quem era. Como ele disse que nunca tinha visto eu trouxe pra senhora.
- Mas então eu não sei? Do Carmo andava com essa chavinha no pescoço mas nunca ninguém podia ver não. Estava sempre por debaixo da roupa. Só sei que fazia muitos tempos que tinha esse pertence.

O cordãozinho em questão era uma peça de prata antiga, com uns sessenta centímetros, trançada de forma tão perfeita que só poderia ter sido arte de um grande mestre. A tal chavezinha era sim uma chave pequena, feita em ouro e, embora desse nobre metal fosse feita, parecia desgastada pelo tempo ou pelo seu contínuo uso.

Maria deitou a chave sobre a velha mesa de madeira ao lado de sua cama e ali ela permaneceu por dias, meses, anos.

Todos nas redondezas já haviam esquecido o desaparecimento de Maria do Carmo, assim como haviam esquecido todos os fatos que dele decorreram. A vida de Maria das Dores seguia seu ritmo e as novidades trazidas pelos passantes já não lhe despertavam qualquer sentimento. Ora falavam da intensa seca; ora reclamavam que o rio, antes abundante em peixes, estava secando e, ora, ainda, passavam só para comprar um par de sandálias de couro.

É bem verdade que Maria, mesmo sem poder ver, sentia que os dias estavam mais quentes, que sua terra estava mais seca e que seus carneiros já não podiam lhe dar a mesma quantidade de couro de antes. Sentia, também, a escassez do peixe, o gosto diferente da macaxeira, mas, alheia a tudo, sentia que seu tempo também não era tão longo. Suas mãos, outrora ágeis e aguçadas, tal qual a vista da patativa, já não podiam tecer com a mesma velocidade.

Numa noite de calor intenso, sem conseguir dormir, Maria levantou-se, abriu a janela de seu quarto e ali se debruçou como se a vista da noite pudesse apreciar. Permaneceu ali, sentindo a pouca brisa que lhe soprava o rosto até que ouviu o som de algo caindo ao chão. Virou-se e, instintivamente, curvou-se próxima a mesa de sua cabeceira. Não precisou sentir o assoalho de madeira muitas vezes e em suas mãos já estava o cordãozinho de Do Carmo. Como não era mulher de se deixar impressionar, apertou o objeto em suas mãos, fechou a janela e voltou a se deitar.

Nesta noite teve um sonho. Estava sentada só, à beira do São Francisco. Era só uma menina de nove, dez anos de idade. Vestido branco de missa. Sentia a água lhe tocar os pés e podia enxergar. Sim, em seu sonho Maria podia ver como todos vêem. Contemplava a água límpida e os peixes que pareciam vir brincar com seus pés sob a água. A frescura do dia a animava e ela se pôs a andar pelas margens. Como criança curiosa e estupefata pelo que a visão lhe podia dar, afastou-se tanto que chegou a uma plantação de cajueiros. Percebeu não estar sozinha quando uma outra criança se aproximou e a convidou para deliciar-se com os belos frutos que estavam ali, bem ao alcance de suas mãos. Era Maria do Carmo. Igualmente vestidinha de branco, falante como a conhecera e feliz por estar ao seu lado naquele paraíso, desfrutando de um momento que jamais fora possível.

O sonho durou tanto tempo que Maria, acostumada a acordar ao primeiro berro de qualquer de seus carneiros, levantou-se com o sol já a atravessar as frestas da janela.. Quem pudesse ver seu rosto nessa hora saberia que estava feliz. Era como se de uma grande e bonita viajem tivesse acabado de aportar.

Neste dia não cumpriu suas rotinas matinais. Limitou-se a fazer seu café forte, tomar nas mãos a velha caneca de ágata e a sentar-se sobre o juazeiro. Ali permaneceu até a chegada de Pedro, que vinha lhe trazendo um punhado de bonitos cajus maduros.
- Dia, Dona Maria!
- Dia, Pedro. Tava aqui justinho esperando por ti.

Na cabeça de Maria, desde a hora que acordara, o único intuito era ir até a casa de Maria do Carmo. Não sabia o porque de tão obstinado desejo, mas, sabia que lá queria ir.

Calçou suas sandálias e, seguindo a voz de Pedro e as antigas lembranças do trajeto, se pôs a caminho.

A casa permanecia como se sua dona ainda a habitasse e tivesse somente saído para buscar seu peixe ou visitar a amiga.

Maria se aproximou da porta e pediu a Pedro que tentasse destrancar a fechadura já corroída pela ferrugem. Para surpresa, a porta não estava trancada. Entraram e Maria, tateando as paredes de estuque, chegou até ao quarto de Das Dores. Ali, sentou-se na cama e pediu a Pedro que a deixasse só por uns instantes. Balançava as pernas soltas no ar e pensava em seu sonho. Em uma das mãos, apertava o cordão com a chave. Nesse momento, sentiu seus pés baterem em algo sob a cama.

- PedroI Pedro!
- To aqui dona Maria, que se assucedeu?
- Pedro, tem uma coisa por debaixo da cama. Tu pode ver o que é?
- Oxe! Mas é uma caixa bonita que só vendo dona Maria. Passe só a mão pra ver.

A caixa dita por Pedro era, na verdade, um pequeno baú esculpido em baraúna e adornado com pinturas vivas de anjos, arcanjos, querubins e outros seres celestes.

À pedido de Maria, o rapaz levou o baú até sua casa. Lá chegando, Maria agradeceu e despediu-se dizendo se sentir cansada da caminhada.

Assim que Pedro saiu, Maria fechou as portas da casa, colocou o baú sobre a mesa da cozinha, e, com a mais absoluta certeza de sua existência, o abriu com a chave de ouro que carregava junto ao cordão.

Aberto o baú, uma grande luz tomou conta da pequena casa. Era como se mil lâmpadas tivessem se acendido ao mesmo tempo. Tão forte foi o clarão que foi visto a léguas dali.

Pela primeira vez em sua vida, Maria pôde enxergar. Não mais enxergar com a visão do tato, mas enxergar com os olhos. Deslumbrou-se ao ver os móveis de sua casa, seu bule de café, a madeira da mesa. Foi até sua pequena oficina e lá contemplou o couro, as sandálias, as ferramentas com que suas mãos trabalharam por anos. Saiu porta afora e viu seus carneiros magros, viu o entardecer e viu seu Padim recostado no pé de Juá.

- Meu Santo! Prá que tudo isso?
O Santo fitava, sorridente, o rosto em lágrimas de Maria das Dores e, sem palavra alguma dizer, lhe estendeu as mãos.

Naquele momento, Maria teve o conhecimento do bem e do mal dos homens. Soube sobre a ciência e a matemática. Aprendeu sobre guerras e vitórias, sobre a fé e seus malefícios.

Maria viveu até os seus cento e doze anos. Tornou-se santa naquela terra distante e esquecida. Por seus olhos, os aleijados se levantaram; os cegos puderam ver, os mudos falaram, aqueles de pouca fé tornaram-se crentes.

Nunca se soube de Maria do Carmo. A própria Das Dores, em seu leito de morte, pediu que lhe colocassem um espelho diante dos olhos, numa última tentativa de ver o acontecido de anos atrás. A única coisa que pôde ver foi a mesma luz que a fizera conhecedora dos mistérios da vida, a mesma luz que a consumiu diante da multidão que chorava por sua partida.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O OLHAR E O OLHAR DE MARIA DAS DORES (capítulo segundo)

O anoitecer aumentou a angústia e o canto dos grilos pareciam lamentos que a sensibilidade da alma de Maria podia entender como gritos de socorro.

Sem muito pensar, levantou-se e saiu porta afora, lampião na mão, como se destino traçado tivera. Parecia esquecer-se que, dentre os dons que Deus lhe dera, não estava a visão física. Mas partiu noite adentro como se a vista da alma lhe pudesse guiar.

No início foram tropeços pelo caminho tão perto, tão desconhecido para si. Mas, a esta altura, nada a poderia deter. Despira-se de seus medos e obstinada continuava sua caminhada cega e lúcida.

Depois de algum tempo, ouviu vozes ao longe. À medida que caminhava, as vozes pareciam tornar-se mais distantes e, então, pensou estar caminhando na direção errada. Parou e instintivamente começou a cantarolar:

“...E quem é ele? E quem é ele? É o padre Cícero Romão, do Juazeiro do Norte, meu padim, sua bênção!"

Como que por milagre de Cícero, sua canção foi respondida por uma voz ao longe:

- Quem vem lá?

Seu coração disparou num misto de felicidade e temor, tal qual um marinheiro absorto pelo tanto navegar ao avistar a terra firme e desconhecida.

- Maria das Dores, filha de Celestino. Quem se achega?
- É Pedro, filho de Antonio peixeiro. A senhora pode continuar sua cantoria que eu me achego pela luz da lamparina.

E Pedro veio ao seu encontro, guiado pela voz cega de Maria, pela luz muda da lamparina e pelo cheiro enfumaçado do querosene.

- Oxe, Dona Maria! Que é que a senhora tá fazendo andando sozinha no meio da noite?
- Olhe menino, eu to aqui andando aperreada atrás de Do Carmo. Tu viste ela por essas bandas?
- Olhe só. Dona Do Carmo foi lá no meu pai depois da hora do almoço pra comprar uns surubim. Inté disse que ia levar uns lá pra senhora. Mas, oxe, tem muito tempo isso, dona.
- Tu viste ela ir embora?
- Mas vi sim senhora. Inté mandei umas pinha bonita que tinha tirado cedo.

Nesse momento, Maria das Dores fechou os olhos sem luz e soltou um grito que pareceu estremecer a terra.

Pedro aproximou-se mais, a segurou pelo braço e perguntou o que se passava. Das Dores permaneceu imóvel, olhos cerrados e inerte como se tivera sido transportada para outro mundo. Foram quase cinco minutos de silêncio absoluto, até que abriu os olhos e disse:

- Menino Pedro, Do Carmo foi apunhalada sete vezes, depois foi arrastada até a margem do rio e conforme o rio subiu, ela foi levada pelas águas.

O rosto de Pedro transfigurou-se.

- Oxe, Dona Maria. Quem ia fazer uma desgraceira dessa com Dona do Carmo?
- Isso meu "padin" não mostrou não. Mas, é certeza que a desgraça aconteceu.

...continua