sábado, 2 de agosto de 2008

A PENA DE PARKER

E era chegada a hora de manifestar-se.
E era chegada a hora de tomar sua pena
e escrever sobre a vida e a morte no papel
já amarelado sobre a escrivaninha.
Mãos trêmulas segurando a caneta de marca
que, por instantes, lhe fazia lembrar o mal que o abatia.
Lembranças.
Tão breves, tão dissociadas que o faziam confundir-se entre
a pena e a letra, entre a felicidade e a sorte, entre passado e presente,
confusos em seu cérebro outrora bombardeado de idéias.
A chícara de chá à sua frente, outrora era uma dose do seu bom
e velho whisky escocês.
O cinzeiro, companheiro inseparável de suas viagens à terra
das letras, agora lhe servia como porta-comprimidos.
Lembranças do passado restavam-lhe poucas.
O seu presente parecia ser armazenado em um HD defeituoso que
à cada hora, sem qualquer comando, era formatado.
Ao lado da escrivaninha, o espelho insistia em lhe mostrar a
face ainda jovem de um senhor sem memórias.
Fitava o papel e de sua pena começavam a brotar rabiscos
que pareciam poemas. Mas, a cada estrofe, lhe fugia a rima,
lhe fugia a métrica, lhe fugiam as palavras como se tentassem saltar
do papel e precipitar-se de um arranha-céus qualquer.
Sem comoção, levantou-se, virou-se e apanhou em sua estante
um de seus livros favoritos. Não lhe era favorito por lhe haver dado
fama e dinheiro, lhe era o favorito por ter sido o primeiro nascido de sua pena.
Sentou-se e começou a folheá-lo por horas. Não lia os contos, não lia os poemas,
apenas lia seus títulos.
O chá sobre a escrivaninha jazia frio, assim como seu rosto até deparar-se
com o poema intitulado "sensos".
Resolveu lê-lo em voz alta.
Quem sabe, assim, não correria o risco de lhe ver afugentadas as letras.
Voz calma, meio embargada...
"Não tenho bom senso,
não tenho mal senso,
não tenho estratégias,
não tenho inveja.
Prefiro os que mentem aos que não dizem verdades.
Prefiro os que choram aos que não sabem sorrir.
Prefiro os que não dormem aos que não sabem sonhar.
Prefiro o silêncio às frases mal ditas.
Prefiro a agonia à calma fugídia.
Não tenho pesos.
Não tenho medidas.
Não tenho medo.
Não tenho feridas.
Prefiro as palavras sem rima aos poemas medidos.
Prefiro os que gritam aos que não sabem escrever nos olhos.
Prefiro os que calam aos que não sabem gritar.
Prefiro os que mostram aos que não sabem esconder.
Não tenho regras.
Não tenho réguas.
Não tenho tamanhos.
Não tenho sensos,
bons ou maus sensos.
Não tenho censura.
Não tenho lisura.
Sou poeta pela natureza de ser canhoto,
pela avareza das palavras faladas,
pelo senso,
pelo sentido sexto."
Terminando a leitura, sentiu-se um vencedor.
Olhou para sua velha estante e percebeu,
talvez pela primeira vez em sua vida que era, sim, poeta.
Eram dignos todos os troféus em suas prateleiras,
assim como dignas, eram todos as homenagens em sua parede.
Sentou-se, retomou sua pena e escreveu.
Escreveu como nunca antes havia escrito.
Com palavras que nunca ousara deitar no papel.
Ao final, dia amanhecendo, foi até seu quarto, deitou-se e dormiu.
Dormiu na esperança de que seu derradeiro escrito
o fizesse ser lembrado pelo que nem ele podia
mais lembrar-se, o ofício de escrever.


Este breve conto é dedicado ao meu amigo, incentivador,
jornalista, editor, crítico de música e grande escritor
Fernando Rozano (http://fernandorozano.blogspot.com/).


No player, "Alfonsina y el Mar", na voz de Mercedes Sosa.