E era chegada a hora de manifestar-se.
E era chegada a hora de tomar sua pena
e escrever sobre a vida e a morte no papel
já amarelado sobre a escrivaninha.
Mãos trêmulas segurando a caneta de marca
que, por instantes, lhe fazia lembrar o mal que o abatia.
Lembranças.
Tão breves, tão dissociadas que o faziam confundir-se entre
a pena e a letra, entre a felicidade e a sorte, entre passado e presente,
confusos em seu cérebro outrora bombardeado de idéias.
A chícara de chá à sua frente, outrora era uma dose do seu bom
e velho whisky escocês.
O cinzeiro, companheiro inseparável de suas viagens à terra
das letras, agora lhe servia como porta-comprimidos.
Lembranças do passado restavam-lhe poucas.
O seu presente parecia ser armazenado em um HD defeituoso que
à cada hora, sem qualquer comando, era formatado.
Ao lado da escrivaninha, o espelho insistia em lhe mostrar a
face ainda jovem de um senhor sem memórias.
Fitava o papel e de sua pena começavam a brotar rabiscos
que pareciam poemas. Mas, a cada estrofe, lhe fugia a rima,
lhe fugia a métrica, lhe fugiam as palavras como se tentassem saltar
do papel e precipitar-se de um arranha-céus qualquer.
Sem comoção, levantou-se, virou-se e apanhou em sua estante
um de seus livros favoritos. Não lhe era favorito por lhe haver dado
fama e dinheiro, lhe era o favorito por ter sido o primeiro nascido de sua pena.
Sentou-se e começou a folheá-lo por horas. Não lia os contos, não lia os poemas,
apenas lia seus títulos.
O chá sobre a escrivaninha jazia frio, assim como seu rosto até deparar-se
com o poema intitulado "sensos".
Resolveu lê-lo em voz alta.
Quem sabe, assim, não correria o risco de lhe ver afugentadas as letras.
Voz calma, meio embargada...
"Não tenho bom senso,
não tenho mal senso,
não tenho estratégias,
não tenho inveja.
Prefiro os que mentem aos que não dizem verdades.
Prefiro os que choram aos que não sabem sorrir.
Prefiro os que não dormem aos que não sabem sonhar.
Prefiro o silêncio às frases mal ditas.
Prefiro a agonia à calma fugídia.
Não tenho pesos.
Não tenho medidas.
Não tenho medo.
Não tenho feridas.
Prefiro as palavras sem rima aos poemas medidos.
Prefiro os que gritam aos que não sabem escrever nos olhos.
Prefiro os que calam aos que não sabem gritar.
Prefiro os que mostram aos que não sabem esconder.
Não tenho regras.
Não tenho réguas.
Não tenho tamanhos.
Não tenho sensos,
bons ou maus sensos.
Não tenho censura.
Não tenho lisura.
Sou poeta pela natureza de ser canhoto,
pela avareza das palavras faladas,
pelo senso,
pelo sentido sexto."
Terminando a leitura, sentiu-se um vencedor.
Olhou para sua velha estante e percebeu,
talvez pela primeira vez em sua vida que era, sim, poeta.
Eram dignos todos os troféus em suas prateleiras,
assim como dignas, eram todos as homenagens em sua parede.
Sentou-se, retomou sua pena e escreveu.
Escreveu como nunca antes havia escrito.
Com palavras que nunca ousara deitar no papel.
Ao final, dia amanhecendo, foi até seu quarto, deitou-se e dormiu.
Dormiu na esperança de que seu derradeiro escrito
o fizesse ser lembrado pelo que nem ele podia
mais lembrar-se, o ofício de escrever.
Este breve conto é dedicado ao meu amigo, incentivador,
jornalista, editor, crítico de música e grande escritor
Fernando Rozano (http://fernandorozano.blogspot.com/).
No player, "Alfonsina y el Mar", na voz de Mercedes Sosa.
26 comentários:
Belo mani festa a tua pena ... bonito texto/poema
"Prefiro os que não dormem aos que não sabem sonha"
...Dedicatória que pelo que tenho lido do Fernando é mto bem entregue.
parabéns pelo teu espaço e beijo das nuvens
Esqueci referir a beleza da música...
canto da pena
beijo das nuvens
Fiquei curiosa para ler essa homenagem (avisada nos comentários dos textos de Fernando). Passei por aki, li e amei!
Bjinhos!
O Fernando Rozano já é quase um guru da inspiração. Belíssima narrativa Beto. Afinal o escritor nunca tira férias. Descansa em alma.
meu amigo Beto, não sei o que dizer/escrever. tua pena, bem o sabes, é das mais criativas que habitam esses espaços todos, cuja ausência sempre haverá de deixar um vazio imenso de tudo. tua escolha éo teu ofício, escrever sem pena. e, então, através da tua palavra, sim, poderemos lavrar todos os tempos. sempre há tempo. fico honrado com a dedicatória, que caminha a passos largos em minha alma, assim como escutar Alfonsina y el mar com Mercedes Sosa é indissociável da minha vida de latino-americano assumido e apaixonado por essas terras de língua espanhola, eu que falo português. Tua jovem e amadurecida pena, já o disse antes, agora encontra a voz enluarada de Mercedes em harmonia perfeita. Ao te abraçar, Beto, em reconhecimento ao teu imenso talento e a esse texto magnífico, insisto em te dizer: não deixa nunca de escrever. meu abraço fraterno.
Bela hoemenagem, tão bonitas palavras, vida que se escorrega no que você narra. Meu Deus!
Parabéns a você e ao Fernando.
Linda homenagem, lindo texto. Coisa pura de quem não fica entre a pena e a letra... mas chega no texto. Pontual.
adorei.
Bjos
Além de escrever desse jeito que toca o coração, ainda dedica essa maravilha ao amigo Fernando. Pura generosidade. Gosto muito disso. Penso que ela, a generosidade, está fazendo falta nos relacionamentos. Parabéns.
Beijos
Jacinta
espero que a Parker não esteja sem tinta. fazes falta, beto. grande abraço.
Uma bela homenagem num texto delicadamente profundo que, associado à doçura da canção interpretada pela Mercedes Sosa, tornam o momento inesquecível. O comentário em agradecimento, do homenageado, completa este belo quadro onde a amizade, a admiração mútua e o reconhecimento, se tornam presente de uma forma tão bonita. Grata pela partilha, amigo! Tudo muito terno e lindo!
Ficam flores, estrelas e sorrisos, para enfeitar a tua noite. Um beijo no coração!
Por onde andas Beto? Saudade de ler seus textos.
Adorei!....Inspiração e narrativa unidas! Parabens!
grande abraço
A poesia tem de continuar. Poema grandioso. Um dos melhores textos que já li sobre os conflitos entre o autor e a sua obra.
Depois de mais de trinta dias ausente da blogosfera, é um prazer transitar entre a pena e a letra de uma escrita tão precisa.
A propósito, não precisa de Parker. Escreveria bem até com uma BIC made in Taiwan.
Um abraço!
Muito lindo amigo, faz pensar e quase entrar em crise existencial. Parabéns. bjsss...
Cadê a atualização por aqui??? Pode não, pode não!
Ps. deixei uma pergunta pra vcs no meu último post. Não costumo deixar esse tipo de mensagem, mas essa é só pra matar a curiosade. Se tive rum tempinho, passa lá.
mas que surpresa boa!! adorei ambas em todos os sentidos que me sentem no peito!!
homenagem merecida!! eu sei bem e também sou adepto da sua arte de ser!
um fortissimo abraçao deste teu amigo
Eduardo
:-)
Gostei bastante. O tempo e a poeira vão tentando nos convencer de que não há letras para o dia. Mentira... Sempre há.
Beijos, saudades, fique bem!
Mandou bem demais!
Seja bem-vindo ao Balaio, quando quiser!
Grande abraço!
Ô menino, por onde andas? Preguiça de postar? Na ausência de algo novo para ler fiquei por aqui relendo teus escritos. Como escreves bem, amigo!
Deixo um ramalhete de violetas azuis enfeitando teu caminhas, estrelas douradas ornamentando teus sonhos, sorrisos de anjos pautando teu caminhar, e um beijo no coração.
É verdade que não escreves a mais de doisssssssssss mesesssssssss???
Onde anda a inspiração?
Vim trazer-te uma orquídea lilás, uma estrela dourada, o sorriso de um anjo azul, para desejar que estejas bem, colhendo versos entre as flores que a primavera nos trouxe, e falar de saudade, minha e dos amigos que aqui te visitam. Para falar de tudo isto, fica também um beijo no coração!
Trago-te uma estrela para enfeitar a tua noite, nesta tarde que se esvai de mansinho...
Esteja onde estiver, amigo, que te cheguem a alegria, a paz e o amor, no cantar de uma estrela que, riscando os céus, possa trazer poesia ao teu olhar.
Fica um raio de sol a brincar nos teus sonhos.
Estou aqui rindo ao ver que as últimas mensagens tão todas minhas... e vai ficar mais esta, e até que dês notícias (alvissareiras, espero) te deixo um raio de luar para enfeitar tuas noites, um raio de sol para brincar nas horas dos teus dias, e um beijo no teu coração, falando de saudade dos teus textos.
Talvez eu não tenha mais a oportunidade de voltar por aqui, por isso te deixo um ramalhete de violetas azuis e um beijo no coração. Que teus caminhos estejam sempre inundados de alegria e paz e que teus sonhos se realizem todos.
Fica meu carinho!
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