quinta-feira, 19 de março de 2009

O OLHAR E O OLHAR DE MARIA DAS DORES (capítulo primeiro)

Alheia às desventuras climáticas que tornavam cada vez mais quentes os seus dias e cada vez mais árida a sua terra; como o fazia todas as manhãs, Maria acordou, fez o café, apanhou sobre a mesa a tapioca assada por ela na noite anterior e foi sentar-se à sombra tímida do pé de juá.

No banquinho de madeira, repetia seu ritual matutino, aproveitando a pouca brisa que o ar lhe trazia e pensava. Pensava no couro de carneiro curtido e que em poucas horas, por suas mãos calejadas, viraria sandálias.

Maria das Dores era seu nome. Filha de Celestino e Maria da Ajuda. Irmã de Francisco, Joaquim, Antônio, João, Lázaro, Pedro, José, Celestina, Maria de Nazaré, Maria Francisca e Maria Cândida. Mulher de estatura pequena, braços fortes e olhar de quem já vira de tudo na vida.

As terras eram herança de seu pai; o juazeiro, lembrança de sua mãe e a arte de calçar o povo era dom de Deus, assim como o dom de cantar enquanto tecia o couro duro até que o toque reconhecesse a perfeição de seu trabalho.

Nesse dia, permitiu-se ficar um pouco mais à sombra e adiou o início de seus afazeres diários. Os pés descalços deslizavam sobre a terra seca como se desenhos quisessem fazer. Podia ouvir ao longe o som dos poucos passantes na estrada e naquele momento se deu conta de que ela mesma jamais percorrera qualquer estrada. Dedicara a vida a cuidar dos pais, dos irmãos menores e de quem mais por ali aparecesse.

Refeita de seu momento nostálgico, caminhou até os fundos da casa e se pôs a cortar, costurar, cantar e tocar carinhosamente cada sandália pronta. Assim foi até que o sol estivesse à pino e lhe mostrasse que era hora de parar para o almoço.

Ritualmente, retirou da lata de banha um pedaço da carne do carneiro que ela mesma preparara dias atrás e o aqueceu enquanto a água cozinhava a macaxeira que complementaria sua refeição.

- Das Dores!
- Se achegue, Do Carmo!

Maria do Carmo. Maria das Dores. Marias de uma terra pobre, unidas pelas agruras, carmas e dores da vida. Mas, também, unidas pela amizade que a infância seca fez questão de preservar à idade adulta.

- Chegou na horinha. Se assente que já lhe faço um prato.
- Carece não, Das Dores. Tô indo na casa de Seu Antônio e vim perguntar se tu quer surubim.
- Oxe que faz tempo que não faço um surubim, Das Dores. Só tu mesmo pra me fazer isso.
- Oxe, que bobagem, loguinho tô voltando.

O dia passou lento até que o vento do entardecer trouxe com ele a preocupação de Maria com a amiga. Maria do Carmo era mulher de palavra e o fato de não haver voltado com os prometidos surubins a deixava pensando. Mas, pensando em que? No que pensaria alguém que nascera e crescera numa terra esquecida pela chuva e pelos homens? No que pensaria alguém que uma única vez mergulhou as mãos nas águas do São Francisco?

... continua

7 comentários:

Anônimo disse...

feliz com teu retorno....e a pena cada vez mais afiada e talentosa...
grande abraço, e não para mais de escrever.

Oliver Pickwick disse...

Ei, velho Beto! Bom que retornou. Não poderia mesmo privar-nos do talento da sua escrita. Volto para a continuação desta ode às Marias anônimas e sofridas deste universo brasileiro.
Um abraço!

Joice Worm disse...

Eia...Tanta saudades deixaste nestas salas, Beto!!
Um beijo gostoso para ti!! MUAC!

Anônimo disse...

Agora é esperar com ansiedade (muita!) a continuação de mais esta história que sabes contar como ninguém.

Não some mais não, viu? Fazes falta neste mundo blogueiro com tuas postagens tão preciosas.

Que bom que voltaste! Que delicadas flores estejam sempre a margear teus caminhos, encantando teus olhos e perfumando a tua alma.

Fica um sorriso, uma estrela e um beijo no teu coração.

Anônimo disse...

Ansiosa pelo segundo capítulo... rs.

Avise-me quando o postar, meu querido!

Fica um sorriso enfeitando teu coração!

Anônimo disse...

Amigo, cada dia que passa esta melhor, amei, quando crescer quero ser como você. Simplesmente fantástico, bem construído e a história esta linda... Super fiel também ao estilo nordestino, parece que você já esteve lá no nordeste por anos. Parabéns. Ande logo com essa segunda parte...

beijo.

Friendlyone disse...

Letras que aguçam a curiosidade... Estou indo para o segundo capítulo!