O anoitecer aumentou a angústia e o canto dos grilos pareciam lamentos que a sensibilidade da alma de Maria podia entender como gritos de socorro.
Sem muito pensar, levantou-se e saiu porta afora, lampião na mão, como se destino traçado tivera. Parecia esquecer-se que, dentre os dons que Deus lhe dera, não estava a visão física. Mas partiu noite adentro como se a vista da alma lhe pudesse guiar.
No início foram tropeços pelo caminho tão perto, tão desconhecido para si. Mas, a esta altura, nada a poderia deter. Despira-se de seus medos e obstinada continuava sua caminhada cega e lúcida.
Depois de algum tempo, ouviu vozes ao longe. À medida que caminhava, as vozes pareciam tornar-se mais distantes e, então, pensou estar caminhando na direção errada. Parou e instintivamente começou a cantarolar:
“...E quem é ele? E quem é ele? É o padre Cícero Romão, do Juazeiro do Norte, meu padim, sua bênção!"
Como que por milagre de Cícero, sua canção foi respondida por uma voz ao longe:
- Quem vem lá?
Seu coração disparou num misto de felicidade e temor, tal qual um marinheiro absorto pelo tanto navegar ao avistar a terra firme e desconhecida.
- Maria das Dores, filha de Celestino. Quem se achega?
- É Pedro, filho de Antonio peixeiro. A senhora pode continuar sua cantoria que eu me achego pela luz da lamparina.
E Pedro veio ao seu encontro, guiado pela voz cega de Maria, pela luz muda da lamparina e pelo cheiro enfumaçado do querosene.
- Oxe, Dona Maria! Que é que a senhora tá fazendo andando sozinha no meio da noite?
- Olhe menino, eu to aqui andando aperreada atrás de Do Carmo. Tu viste ela por essas bandas?
- Olhe só. Dona Do Carmo foi lá no meu pai depois da hora do almoço pra comprar uns surubim. Inté disse que ia levar uns lá pra senhora. Mas, oxe, tem muito tempo isso, dona.
- Tu viste ela ir embora?
- Mas vi sim senhora. Inté mandei umas pinha bonita que tinha tirado cedo.
Nesse momento, Maria das Dores fechou os olhos sem luz e soltou um grito que pareceu estremecer a terra.
Pedro aproximou-se mais, a segurou pelo braço e perguntou o que se passava. Das Dores permaneceu imóvel, olhos cerrados e inerte como se tivera sido transportada para outro mundo. Foram quase cinco minutos de silêncio absoluto, até que abriu os olhos e disse:
- Menino Pedro, Do Carmo foi apunhalada sete vezes, depois foi arrastada até a margem do rio e conforme o rio subiu, ela foi levada pelas águas.
O rosto de Pedro transfigurou-se.
- Oxe, Dona Maria. Quem ia fazer uma desgraceira dessa com Dona do Carmo?
- Isso meu "padin" não mostrou não. Mas, é certeza que a desgraça aconteceu.
...continua
2 comentários:
Muito, muito interessante. Um conto de suspense e mistério num cenário tipicamente nordestino.
Se fosse o presidente Luís "Caninha" Lula, eu diria: "oxe, pensei que estas histórias eram coisa de gente de olhos azuis!".
Um abraço!
Estou curiosíssima... Next!
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