terça-feira, 7 de abril de 2009

O OLHAR E O OLHAR DE MARIA DAS DORES (capítulo final)

Passaram-se os meses, assim como passaram pela casa de Maria, o delegado, o investigador, as equipes de reportagem, os videntes e todos aqueles que instigados pela visão contada pelo filho do peixeiro, iam pedir preces ou pelo menos conhecer a mulher que podia ouvir o Padre Cícero.

Em alguns dias, sob o sol causticante, podia-se contar filas com mais de duzentas, trezentas pessoas, esperando, terços em punho, pela oportunidade de se aproximar de Maria e pelo menos tocar-lhe as mãos.

Maria não mais podia curtir o couro dos carneiros que, como ela, envelheciam por seu terreiro sem vida. Nunca mais pudera sentar-se à sombra do pé de juá sem que uma multidão a estivesse acompanhando. O juazeiro só compartilhava com ela a luz da lua, o único momento em que podia se sentir aliviada de tantas rezas, perguntas e lamentos.

Nunca fora de muito rezar. Apesar de ter fé em seu “padin”, na beata Maria e em Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria sempre fez suas preces cantando, sem muitos terços, ave-marias ou padre-nossos. Ao contrário de dona Maria da Ajuda, sua mãe, que acordava de madrugada para rezar terços e passava dias em jejum por gratidão ou pedido aos santos.

Maria cresceu ouvindo sua mãe dizer que no dia de seu nascimento, vinte de julho, viu à beira da cama a imagem do Padre Cícero a lhe estender os braços e a lhe dizer que naquele dia havia nascido uma criança com o olho de Deus. Essa história foi contada aos quatro cantos do Juazeiro, mas, com o passar dos anos, a promessa de se ter ali uma santa perdeu-se no vento. Nunca fizera milagre algum a não ser o de transformar couro de bicho em artefato para calçar o povo.

Assim como a lenda de sua santidade, a visão que tivera da morte de Maria do Carmo, aos poucos, deixou de ter importância para o povo da região e ibope para os meios de comunicação.
A vida voltava ao normal a cada amanhecer. Maria já podia cantar depois de quase dois anos do acontecimento. Pedro já era um rapaz feito e, dia ou outro, aparecia levando uma fruta ou um punhado de surubins. A agonia do momento vivido junto a Maria os tornara próximos, como se amigos fossem há tempos.

- Dona Maria!
- Se achegue, Pedro. Tô aqui a costurar.
- Dona Maria, eu tô que tô aperreado desde ontem de noitinha.
- Vixi, menino. O que se assucedeu?
- Olhe que ontem eu tava lá arrumando as coisas de casa e achei esse cordãozinho. Pega só pra senhora ver.

Com o olhar que só o tato poderia lhe dar, Maria viu que era um objeto que conhecia muito bem e de longa data.

- Menino! Mas esse cordão é de Do Carmo. Oxe se não é o cordão com a chavezinha que ela não tirava do pescoço. Onde tu achou isso?
- Tô lhe dizendo. Tava arrumando as coisa lá no quartinho dos fundo quando vi que tinha um troço reluzindo no chão.

Pedro pôde ver o semblante de Maria transformar-se enquanto carinhosamente apalpava o objeto em suas mãos e, nesse pequeno instante, passaram-lhe pela cabeça os mais estranhos pensamentos. O que estaria aquela senhora de aparência franzina à sua frente a imaginar?

Não era letrado. Era filho de pescador e, como tal, aprendiz de pescador era. É certo que não gozava do dom como o seu pai, mas, para quem crescera acostumado ao cheiro do agora escasso pescado e sem grandes oportunidades numa terra pobre, ser pescador era o ofício que se apresentava para seguir.

- Se avexe não, menino. Eu estou cá com meus pensamentos mas não to a pensar nada de mal de ti ou de seu Antônio.
- Olhe, Dona Maria. Antes de trazer o cordãozinho eu perguntei pro pai se ele sabia de quem era. Como ele disse que nunca tinha visto eu trouxe pra senhora.
- Mas então eu não sei? Do Carmo andava com essa chavinha no pescoço mas nunca ninguém podia ver não. Estava sempre por debaixo da roupa. Só sei que fazia muitos tempos que tinha esse pertence.

O cordãozinho em questão era uma peça de prata antiga, com uns sessenta centímetros, trançada de forma tão perfeita que só poderia ter sido arte de um grande mestre. A tal chavezinha era sim uma chave pequena, feita em ouro e, embora desse nobre metal fosse feita, parecia desgastada pelo tempo ou pelo seu contínuo uso.

Maria deitou a chave sobre a velha mesa de madeira ao lado de sua cama e ali ela permaneceu por dias, meses, anos.

Todos nas redondezas já haviam esquecido o desaparecimento de Maria do Carmo, assim como haviam esquecido todos os fatos que dele decorreram. A vida de Maria das Dores seguia seu ritmo e as novidades trazidas pelos passantes já não lhe despertavam qualquer sentimento. Ora falavam da intensa seca; ora reclamavam que o rio, antes abundante em peixes, estava secando e, ora, ainda, passavam só para comprar um par de sandálias de couro.

É bem verdade que Maria, mesmo sem poder ver, sentia que os dias estavam mais quentes, que sua terra estava mais seca e que seus carneiros já não podiam lhe dar a mesma quantidade de couro de antes. Sentia, também, a escassez do peixe, o gosto diferente da macaxeira, mas, alheia a tudo, sentia que seu tempo também não era tão longo. Suas mãos, outrora ágeis e aguçadas, tal qual a vista da patativa, já não podiam tecer com a mesma velocidade.

Numa noite de calor intenso, sem conseguir dormir, Maria levantou-se, abriu a janela de seu quarto e ali se debruçou como se a vista da noite pudesse apreciar. Permaneceu ali, sentindo a pouca brisa que lhe soprava o rosto até que ouviu o som de algo caindo ao chão. Virou-se e, instintivamente, curvou-se próxima a mesa de sua cabeceira. Não precisou sentir o assoalho de madeira muitas vezes e em suas mãos já estava o cordãozinho de Do Carmo. Como não era mulher de se deixar impressionar, apertou o objeto em suas mãos, fechou a janela e voltou a se deitar.

Nesta noite teve um sonho. Estava sentada só, à beira do São Francisco. Era só uma menina de nove, dez anos de idade. Vestido branco de missa. Sentia a água lhe tocar os pés e podia enxergar. Sim, em seu sonho Maria podia ver como todos vêem. Contemplava a água límpida e os peixes que pareciam vir brincar com seus pés sob a água. A frescura do dia a animava e ela se pôs a andar pelas margens. Como criança curiosa e estupefata pelo que a visão lhe podia dar, afastou-se tanto que chegou a uma plantação de cajueiros. Percebeu não estar sozinha quando uma outra criança se aproximou e a convidou para deliciar-se com os belos frutos que estavam ali, bem ao alcance de suas mãos. Era Maria do Carmo. Igualmente vestidinha de branco, falante como a conhecera e feliz por estar ao seu lado naquele paraíso, desfrutando de um momento que jamais fora possível.

O sonho durou tanto tempo que Maria, acostumada a acordar ao primeiro berro de qualquer de seus carneiros, levantou-se com o sol já a atravessar as frestas da janela.. Quem pudesse ver seu rosto nessa hora saberia que estava feliz. Era como se de uma grande e bonita viajem tivesse acabado de aportar.

Neste dia não cumpriu suas rotinas matinais. Limitou-se a fazer seu café forte, tomar nas mãos a velha caneca de ágata e a sentar-se sobre o juazeiro. Ali permaneceu até a chegada de Pedro, que vinha lhe trazendo um punhado de bonitos cajus maduros.
- Dia, Dona Maria!
- Dia, Pedro. Tava aqui justinho esperando por ti.

Na cabeça de Maria, desde a hora que acordara, o único intuito era ir até a casa de Maria do Carmo. Não sabia o porque de tão obstinado desejo, mas, sabia que lá queria ir.

Calçou suas sandálias e, seguindo a voz de Pedro e as antigas lembranças do trajeto, se pôs a caminho.

A casa permanecia como se sua dona ainda a habitasse e tivesse somente saído para buscar seu peixe ou visitar a amiga.

Maria se aproximou da porta e pediu a Pedro que tentasse destrancar a fechadura já corroída pela ferrugem. Para surpresa, a porta não estava trancada. Entraram e Maria, tateando as paredes de estuque, chegou até ao quarto de Das Dores. Ali, sentou-se na cama e pediu a Pedro que a deixasse só por uns instantes. Balançava as pernas soltas no ar e pensava em seu sonho. Em uma das mãos, apertava o cordão com a chave. Nesse momento, sentiu seus pés baterem em algo sob a cama.

- PedroI Pedro!
- To aqui dona Maria, que se assucedeu?
- Pedro, tem uma coisa por debaixo da cama. Tu pode ver o que é?
- Oxe! Mas é uma caixa bonita que só vendo dona Maria. Passe só a mão pra ver.

A caixa dita por Pedro era, na verdade, um pequeno baú esculpido em baraúna e adornado com pinturas vivas de anjos, arcanjos, querubins e outros seres celestes.

À pedido de Maria, o rapaz levou o baú até sua casa. Lá chegando, Maria agradeceu e despediu-se dizendo se sentir cansada da caminhada.

Assim que Pedro saiu, Maria fechou as portas da casa, colocou o baú sobre a mesa da cozinha, e, com a mais absoluta certeza de sua existência, o abriu com a chave de ouro que carregava junto ao cordão.

Aberto o baú, uma grande luz tomou conta da pequena casa. Era como se mil lâmpadas tivessem se acendido ao mesmo tempo. Tão forte foi o clarão que foi visto a léguas dali.

Pela primeira vez em sua vida, Maria pôde enxergar. Não mais enxergar com a visão do tato, mas enxergar com os olhos. Deslumbrou-se ao ver os móveis de sua casa, seu bule de café, a madeira da mesa. Foi até sua pequena oficina e lá contemplou o couro, as sandálias, as ferramentas com que suas mãos trabalharam por anos. Saiu porta afora e viu seus carneiros magros, viu o entardecer e viu seu Padim recostado no pé de Juá.

- Meu Santo! Prá que tudo isso?
O Santo fitava, sorridente, o rosto em lágrimas de Maria das Dores e, sem palavra alguma dizer, lhe estendeu as mãos.

Naquele momento, Maria teve o conhecimento do bem e do mal dos homens. Soube sobre a ciência e a matemática. Aprendeu sobre guerras e vitórias, sobre a fé e seus malefícios.

Maria viveu até os seus cento e doze anos. Tornou-se santa naquela terra distante e esquecida. Por seus olhos, os aleijados se levantaram; os cegos puderam ver, os mudos falaram, aqueles de pouca fé tornaram-se crentes.

Nunca se soube de Maria do Carmo. A própria Das Dores, em seu leito de morte, pediu que lhe colocassem um espelho diante dos olhos, numa última tentativa de ver o acontecido de anos atrás. A única coisa que pôde ver foi a mesma luz que a fizera conhecedora dos mistérios da vida, a mesma luz que a consumiu diante da multidão que chorava por sua partida.

10 comentários:

Ariadne Manfredine disse...

Obrigada pela visita e eplo comentário.

Beijos

Friendlyone disse...

É de deixar a gente pensando na vida.

Gostei muito!

Oliver Pickwick disse...

A fertilidade dos detalhes, a manipulação hábil de elementos das cultura e religiosidade nordestinas, a riqueza das personagens, além da linha de mistério do princípio ao fim da narrativa, essencial para segurar o leitor e balizar a história.
Os seus olhares são de grande alcance, prezado Beto. Ficção, este é o Beto Mathos!
Um abraço!

F. Reoli disse...

Cara, parebéns pelo conto, você escreve de uma maneira contagiosa e contagiante!
Abração

Jacinta Dantas disse...

Oi Beto,
feliz estou aqui, lendo seu cuidadoso conto, lapidado com sua maestria no trato com as letras. Feliz por tê-lo de volta nesse espaço. Feliz por visualizar na sequência do conto, a esperança que não pode nos abandonar.
Que bom!
beijo

Beatriz disse...

Ler o conto por capítulos nos deixa ansiosos pela etapa seguinte, mas lê-lo no seu todo nos traz aquela sensação gostosa de que se adentrou um mundo tão diverso do nosso e tão parecido em emoções e sentimentos, que ficamos ao mesmo tempo maravilhados com a narrativa e tristes pelo seu término.

Lindo, profundo e verdadeiro, o que escreveste, amigo!

Fica um punhado de estrelas enfeitando teu caminhar, e um beijo no coração.

Oliver Pickwick disse...

E aí, camarada? Uma pausa prolongada para a próxima?
Um abraço!

Camilla Tebet disse...

Que bom que vc voltou. Fiquei feliz em ver. Volto com calma ler os 3 capítulos.

Anônimo disse...

Nossa beto chorei, rss... Lindo, muito lindo! Rachel e Graciliano ficariam emocionados se lessem. Valeu muito a pena esperar o final. Continue postando sempre. Um beijo enorme!

Juca Magalhães disse...

Blog literário é difícil demanter não é? comecei um conto e não consigo terminar pq tõ sempre escrevendo outras coisas. Mas vou te linkar na Letra Elektrônica hein? Um abraço.