sexta-feira, 4 de abril de 2008

A LETRA NO CORPO (capítulo final)


Nos meses que se seguiram, nossas vidas pareciam ter, enfim, um caminho a ser trilhado. Nossas esperanças se renovavam a cada dia. Igor ainda trabalhava no campo e, graças às nossas economias, morávamos num bom apartamento onde eu podia cultivar violetas na varanda.
Igor já conseguia lidar melhor com suas lembranças da guerra, graças a sua grande capacidade de recomeçar e ao tratamento psicológico oferecido pelo governo.
Quanto a mim, acreditava que cada dia era um novo nascimento, uma nova porta que se abria para o distanciamento dos horrores vividos no Cáucaso, embora minhas noites ainda fossem povoadas pelo som de gritos, bombas e choro das crianças. O choro das crianças...Esse era o som que mais me atormentava.
- Alexei! Alexei!
Todas as noites tinha a mesma sensação ao despertar dos malditos pesadelos. O rosto triste de Igor e seu abraço na madrugada passaram a fazer parte da insônia que insistia em adentrar o meu mundo, tal qual o ladrão invade casas alheias e as furta sem consentimento.
- Você não pode mais adiar uma consulta ao médico, Alexei. Seus pesadelos têm sido muito constantes, você precisa se livrar dessas dores. Lembre-se que não estamos mais na guerra.
- Me perdoe tê-lo acordado mais uma vez, mas, tenho certeza de que conseguirei me livrar disso sozinho.
- Descanse, conversaremos sobre isso amanhã.
Passei o resto da noite acordado e me amargurava não ter a coragem suficiente para olhar Igor nos olhos e lhe dizer toda a verdade. Logo eu que sempre fora verdadeiro em todas as coisas, agora me deixava morrer por dentro pela dor que causei a quem sequer conhecia.
- Bom dia!
- Café na cama? Não mereço isto depois de ter lhe feito perder sua noite cuidando de mim.
- Cuidaria de você, mesmo perdesse todas as noites de minha vida.
A primavera despontava bela no céu de Rostov. Os canteiros pareciam ter adquirido nova vida e os girassóis agora tinham o mais belo dos tons amarelos.
Igor se esforçava para me arrancar do mundo cinza onde eu mesmo insistia adentrar.
Os passeios pelo parque, as caminhadas pelas vielas vazias, o abraço ao entardecer. Tudo me remetia a um grande vazio, velado pelos sorrisos que, cuidadosamente, não me permitia esquecer. Afinal, pensava eu, Igor passou por momentos piores que os meus. Era como se não me fosse permitido mostrar minha dor. Como se a dor tivesse se tornado um grande segredo do qual só eu mesmo podia compartilhar.
Certa noite, após o jantar, num esforço tamanho, recolhi pratos e talheres e caminhei em direção a cozinha. Podia perceber que Igor me observava, mas não tinha coragem de lhe encarar.
- Alexei!
Me virei rapidamente e lá estava ele, braço apoiado no umbral da porta, me fitando com os mesmos olhos que anos atrás haviam me trazido tanta paz.
- Não pode mais me olhar nos olhos?
- Claro que sim. Por que me pergunta isso?
- Porque há meses você não o faz. Porque há meses percebo seu sorriso obrigatório. Porque há meses não sei quem é você.
- O que você está dizendo não faz sentido.
- Então, me olhe nos olhos.
- Não faça isso.
- Por favor!

Instantaneamente, uma lágrima me desceu o rosto e senti a mão de Igor segurando a minha, como se quisesse arrancar minha dor em um só toque, como se quisesse me abrir o peito e colocar vida onde havia angústia. Olhei para seus olhos e vi que ele também tinha o rosto molhado. O abracei com força e senti suas mãos tocando a cicatriz em minhas costas como fosse um artista a pincelar uma tela.
- Y, Y, Y – ele sussurrava ao meu ouvido enquanto continuava a tocar minhas costas.
Eu não conseguia falar. O choro havia tomado conta de mim como se estivesse mergulhado em um grande pesadelo. As lembranças afloravam tal qual os girassóis do parque. No início amareladas, depois com cores fortes que me faziam gritar em meio aos soluços de meu pranto desenfreado.
- Meu filho não, por favor, meu filho não!
O choro da criança, os gritos da mãe, o abraço de Igor, as imagens se desenhando em minha mente.
- Atire em mim! Meu filho não.
O tiro, o desmaio, a navalha percorrendo minha pele, o Y de Yanko, a criança órfã, minha mãe, Igor, meu pai, a letra no corpo.
Madrugadas podem ser frias, assim como pessoas podem ser cruéis.
Agora entendia mais sobre amor, dor, alegria, entre o bem e o mau.
Agora entendia o grande mistério de mim e não poderia conviver com ele, por isso, parti.
.
(Para Carlinha que, como eu, tem sua letra no corpo)

9 comentários:

douglas D. disse...

entre a pena e a letra
belas imagens tens aqui.

Friendlyone disse...

Amei o final. Gosto de matar as personagens para que elas parem de sofrer porque é ruim. Como literatura é lindo ver as personagens partindo. Já matei algumas (Risos).

Seu conto foi conciso, preciso e mostrou a que veio. Gostei muito e acho sinceramente que você deveria repetir a dose.

Como Carlinha, estou lisongeada, emocionada, sentindo um monte de coisas legais a seu respeito. Que bom que tenho você!

Beijos, te amo!

Carlinha!

Luciana Cecchini disse...

Nossa Beto, fiquei emocionada. Esperei ansiosa pelo final e valeu mesmo a pena. Senti a angústia, o sofrimento dolorido. Depois, o alivio. Triste, mas alivio ainda...

Bjo,

Luci:)))

Luciana Cecchini disse...

Nossa Beto, fiquei emocionada. Esperei ansiosa pelo final e valeu mesmo a pena. Senti a angústia, o sofrimento dolorido. Depois, o alivio. Triste, mas alivio ainda...

Bjo,

Luci:)))

Anônimo disse...

excelente, a escrita flui, com a construção de belas imagens e os quatro capítulos são extremamente equilibrados e bem escritos. belo texto. abraços.

vieira calado disse...

Obrigado pela sua visita ao meu blog.

Um abraço
do outro lado do Atlântico.

Luciana Cecchini disse...

Beto, fui indicada para um selo de reconhecimento do blog. Achei legal e indiquei vc também.

Basta pegar o selo no link abaixo e colar no seu blog. Depois indique alguem tbem (no máximo cinco blogs:

http://bp1.blogger.com/_eVvpxat0OXo/R_bSz6c6RpI/AAAAAAAAAQs/_IOH43xJE0A/s1600-h/selinho.jpg

Bjo,

Luci:)))

aluaeasestrelas disse...

Um conto profundo, que prende a atenção a respiração... Consegui imaginar cada cena, cada sentimento através de suas palavras. Gostei muito de seus textos.
Parabéns!!!

Jacinta Dantas disse...

Ei Beto,
gostei muito do seu jeito de apresentar um conto, assim, em capítulos. Ficava sempre na expectariva do próximo. Gostei,especialmente do que senti na atmosfera permeando as personagens(afetos, guerra, desejo de se sentir filho...).
E, na conclusão, o título do último capitulo fecha a história com chave de ouro. "A letra no corpo" demarca o fluir da história, com uma ótima sequência, nos 04 capítulos.
Tomara que venham outros.
Abração