segunda-feira, 17 de março de 2008

A LETRA NO CORPO (penúltimo capítulo)


Escuridão. Essa é minha concepção da morte. Um grande e imenso vazio escuro onde permanecemos por um tempo indefinido, até que uma grande luz venha e nos arrebate para o lugar que não nos é permitido conhecer, senão neste sagrado momento.
Fitava impassível o rosto daquela mulher e recordava cada momento passado junto a ela. Minha mente se transformara, por instantes, em uma louca máquina do tempo onde flores e jardins se misturavam a cheiros de cevada e bolos de carne. Lembranças de domingos alegres.
- Vamos?
- Sim, me distraí por instantes.
- Vamos passar por isso juntos.
- Obrigado por estar ao meu lado.
A resposta foram seus braços me envolvendo e, só nesse instante, me dei conta de que ainda não chorara. O fiz com a mais sofrida dor, enquanto as mãos de Igor me acariciavam os cabelos.
- Tenho medo!
- Não tenha! Estou contigo.
Caminhamos abraçados como que migrando para um lugar diferente, ao pôr do sol de setembro.
Agora podia entender o porquê de minha tia manter em sua casa, após anos, todos os pertences de seu amado e falecido marido.
A cada gaveta remexida, uma lembrança. A cada lembrança um sorriso ou uma lágrima. Assim, juntei todas as coisas de minha mãe e as levei ao asilo de Rostov.
Igor conseguira um trabalho no campo, trabalhava na colheita de trigo. Nossos turnos diferentes não nos deixava restar muito tempo para estar juntos. Mas, quando estávamos, o tempo parecia parar, o mundo parecia não ter fim.


To be continued...

sexta-feira, 14 de março de 2008

A LETRA NO CORPO (capítulo segundo)


Quando o exército russo invadiu a Chechênia, eu já era um soldado.
A guerra se arrastou por cinco longos anos e, nesse período, eu enterrei amigos, matei os que me disseram ser meus inimigos, vi fé se misturando com sangue em todos os dias de confrontos e sofri ao ter que partir de Grozny deixando Igor numa prisão.
Ao retornar à Rostov, encontrei minha mãe doente, morando em um apartamento fétido e pequeno. A cidade havia crescido, as oportunidades de trabalho deixaram de existir e as pessoas pareciam seres de um outro lugar.
Nesta época eu trabalhava numa fábrica de ração. Foram dias insuportáveis em meio ao mau cheiro de restos de frangos, bois e tudo o mais que se pudesse adicionar àquela mistura horrenda e que, ao final, era embalada em vistosas sacolas plásticas com estampas de cães felizes.
A saúde de minha mãe piorava a cada dia, mas, nesse ponto, eu já havia conseguido um lugar melhor para morarmos. Um apartamento pequeno e pintado com uma cor acinzentada que me fazia pensar estar do lado de fora, comigo por dentro.
Foram dois anos de espera, até que numa tarde chuvosa, ao sair da maldita fábrica, pude ver, de novo, os olhos do único ser capaz de me transmitir paz, me acalmar os medos e me renovar esperanças naquela terra gélida e triste.
Os olhos de Igor. Talvez fossem estes os poucos sinais reconhecíveis naquela figura maltratada pela prisão, pela guerra e por ver suas convicções políticas explodirem como que saídas de um tanque de guerra.
Ficamos abraçados por minutos que pareceram uma eternidade. Aquele misto de pai, filho, amor, calor e dor, reacenderam em meu peito como uma brasa encoberta pela neve.
Agora, eu tinha quase vinte e cinco anos. A morte de minha mãe aconteceu um mês depois da chegada de Igor. Ainda me arde na memória a imagem bela de seu rosto naquela caixa escura.
(to be continued...)

sábado, 8 de março de 2008

A LETRA NO CORPO (capítulo primeiro)


Madrugadas podem ser frias, assim como pessoas podem ser cruéis.
Sobre madrugadas e frio eu sempre entendi muito. Afinal, nasci sob o mais rigoroso dos invernos russos e, criado por minha mãe, já que meu pai nos deixou quando eu tinha apenas sete anos, me habituei a passar noites acordado esperando, junto aos estranhos na estação ou olhando o fogo na pequena lareira, que ela voltasse do trabalho.
Meu nome é Alexei e tenho dezessete anos de idade. Na próxima semana é meu aniversário e serei mais um no exército chercheno.
Talvez lhes pareça comum a minha história, mas, é a minha história. Eu não a desejei, alguém a escreveu como eu lhes escrevo agora.
Naquela madrugada fria, fui até a estação esperar por minha mãe. Me sentei, como de costume, no banco mais próximo da parada 19. Acendi um cigarro e observava os vagabundos, os bêbados, aqueles que chegavam e os que partiam. Me perdi em pensamentos até que fui despertado por um sussuro ao ouvido.
- Você tem um cigarro?
Me afastei bruscamente e ao olhar para ele senti uma mistura de paraíso e horror percorrer minhas veias.
- Perdoe se o assustei.
Sua voz parecia ter algo celeste, mas, também, me trazia uma inexplicável angústia.
Igor Tenenko. Este era seu nome.
Um homem alto, com traços que eu poderia reconhecer em mim mesmo no espelho dos vinte anos futuros.
Igor era um oficial do exército e não foi difícil conversarmos por quase uma hora sentados no banco da parada 19.
Logo, nos víamos todos os dias. Logo, eu sabia tudo sobre aquele homem de olhar doce e sombrio, casaco marrom e que me fazia falar de minha vida como nunca falara ao meu melhor amigo ou à minha própria mãe. Neste ponto, o considerava meu irmão, meu pai, meu filho. É claro que essa relação começava a incomodar minha mãe, que não podia entender porque eu deixara a companhia dos amigos pela cumplicidade com o coronel Tenenko. Afinal, dizia ela, mesmo sem o ter visto, ele tem idade para ser seu pai.

(to be continued)

Pele


Te vejo irrequieto, olhando pro céu com ar de arquiteto,
sonhando tornar o azul mais azul, estrela cadente, sua vida mais quente.
Te vejo perdido em palavras, medindo conversa, olhando pro tempo
que não para de andar.
Te abraço na noite que vira um açoite de a gente se amar.
Reviro sua pele com ar de menino, perco o tino.
Te beijo a boca com a sofreguidão louca do amante fugaz.
Te tomo nos braços com a febre louca de não olhar prá trás.
Te tomo a mão, te evito em vão no desespero de amar.
Te molho o corpo, encharco meu peito com a bebida de um botequim qualquer.
Te pego insano, curvando minha estrada sem sair do lugar.
Amanheço em seu corpo, esperando a noite prá voltar a te amar.